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Os Oitos Odiados (Quentin Tarantino, 2015)


GUILHERME W. MACHADO

É difícil julgar Os Oito Odiados na saída do cinema. Difícil por dois motivos: um porque o filme é uma claustrofóbica sucessão de viradas e baques, no que diz respeito à trama; o outro deve-se ao fato de Tarantino distorcer tanto a dita “narrativa clássica”, inverter tanto a lógica com a qual os espectadores de cinema estão acostumados, que é difícil não sentir algum grau de estranhamento. Por mais que nada disso seja surpresa quando se trata de Quentin Tarantino – basta lembrar que o mesmo adentrou a indústria cinematográfica com Cães de Aluguel [1992] e Pulp Fiction [1994] –, fato é que o diretor não deixa de surpreender, mesmo os fãs, a cada novo filme.

(Texto SEM SPOILERS)

De qualquer forma, chega de frescura: Os Oito Odiados é filmaço. Poucas vezes o estilo de Tarantino se fez tão desconfortável, provavelmente por ser o seu filme mais crítico. A violência aqui, mesmo que pulsante, é muito menos banal do que no restante de suas obras – reclamação que é frequente por parte de seus detratores –, tomando um tom muito mais urgente. Essa sutil, mas significativa mudança de tom é perceptível já nos créditos iniciais, que são montados de forma bem mais contida e fúnebre através de imagens que reforçam a noção de isolamento em meio à neve – além do simbólico plano da cruz –, tudo isso combinado com a soberba e nada festiva trilha sonora do gênio Ennio Morricone, estabelecendo imediatamente a atmosfera que o filme irá buscar.
Daí por diante o filme divide-se em capítulos, como feito em Pulp Fiction [1994] e Kill Bill [2003/2004], nos quais Tarantino quebra insistentemente regra após regra da narrativa cinematográfica “padrão”. Estruturalmente é uma confusão: a introdução é extremamente longa (Syd Field estaria rolando no túmulo), a linearidade temporal é quebrada à bel prazer e, bem no ápice do clímax, Tarantino esfacela toda história para reconstruí-la num longo flashback (outro recurso temido pelos roteiristas). Poucos cineastas têm bala na agulha para fazer tudo isso e sair imune (Welles, Godard, mais alguém?), mas Tarantino o faz tão despreocupadamente – por arrogância, talvez, não importa – que não consigo não admirá-lo por isso.

O trabalho de toda equipe, ademais, foi incrível. A começar pelo grande diretor de fotografia Robert Richardson (A Invenção de Hugo Cabret, Django Livre), que foi nada menos do que excelente, não apenas na iluminação e no uso da cor, mas na forma como ele aproveitou o espaço cenográfico limitado e o utilizou a seu favor com as diversas escolhas focais. Um trabalho que em tempos recentes só encontra parâmetros naqueles feitos por Emmanuel Lubezki (principalmente em Birdman). O design de produção de Yohei Taneda, de Kill Bill, é cuidadoso e detalhístico na criação de Minnie's Haberdashery, ambiente no qual se passa quase todo filme. Ennio Morricone, então, dispensa comentários; uma das minhas trilhas sonoras favoritas do gênio por trás de clássicos como Três Homens em Conflito [1966].

Bem além de um cativante exercício de estilo, entretanto, Os Oito Odiados tem no roteiro a sua maior arma. Altamente metafórico, Tarantino constrói sua crítica mais cruel à America (como os estadunidenses gostam de chamar seu país) através de seus personagens arquetípicos. O genial aqui foi não deixar o conteúdo social passar por cima da história e tornar-se meramente moralista, como aconteceu com o aclamado Mad Max: Estrada da Fúria [2015], mas sim incuti-lo no subtexto, na relação entre os personagens e em suas próprias naturezas individuais. E não me refiro apenas à questão do racismo – tema mais evidente –, o roteiro aborda também outras questões como justiça e misoginia, por exemplo, com a sutileza de poucos no cinema atual (cada vez mais educativo).
Para não me estender mais, encerro com um imprescindível elogio às atuações. Além de Samuel Jackson, que parece que foi feito para trabalhar com o Tarantino e vice-versa; o filme tem um Bruce Dern surpreendentemente contido; Tim Roth que, por mais que tenha imitado trejeitos de Christoph Waltz, faz um bom trabalho, diferente de sua rotina; Kurt Russell à vontade num personagem que lhe cai bem; Walton Goggins que se encontra dentro de seu próprio arquétipo como ator; e, claro, o maior destaque: Jennifer Jason Leigh, brilhantemente intensa, debochada e diabólica como manda seu personagem.


NOTA (4.5/5.0)

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